terça-feira, 9 de junho de 2009

Paris

Quando pisou aquela cidade, sabia que podia amá-lo para sempre. Juntos, agora corriam pelas ruas como duas crianças esfomeadas de liberdade. As mãos cruzavam, tocavam-se, o cheiro dos plátanos, as escadarias e eles tempo demasiado depois de se quererem. Os encontros não dependiam deles, mas do tempo errado que os prendeu num nó fora de tempo.
As Rosas já secas, os sonhos desfeitos e uma esperança escondida enleada em lágrimas tão secas quanto as rosas. Sozinhos no seu mundo, o rio que os embala pelo olhar dos barcos que o sobem e descem.

A verdadeira primeira noite numa cama demasiado grande para quem quer abraçar. Um quarto demasiado grande para quem quer amar. E ao longe “La vie en rose” que ela desejava para ele, nota por nota, como se cada uma delas estivesse na pauta do tempo em que não podiam estar perto.

- Amava-te e não podia amar-te.
E quando se amam o passado fica tão presente que os destrói, sem salvação, sem piedade. Um amor que cresceu para lá do desejo, sem pedidos, só esperanças. Os beijos que ficaram por dar, os abraços ansiados, os olhares dos encontros e as palavras não escritas, escondidas numa gaveta secreta. Mas por um momento o amor deles é verdadeiramente puro e livre, ela, aperta-se nos braços e deixa-se morrer na paz que via nos olhos dele.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Lettre a Anna

Quando entrou naquele quarto não esperava encontrar a carta que anos antes, escondida no livro, agora retira da prateleira. Ela amarelecida repousava na página que gritava:
“- Não percebo nada... Não percebo nada... Tanto tu como eu somos apenas duas pessoas... duas pessoas e nada mais... duas pessoas como todas as outras, que apenas querem viver simplesmente, como toda a gente, como duas pessoas, sem pretensões a grandes ideias ou grandes princípios... e, no entanto olha o que aconteceu...”
A curiosidade humana leva a abrir feridas fechadas, algumas até mesmo curadas, numa tão simples folha de papel. A tinta negra, na folha de papel branca, coseu numa linha de saudade o amor que não seria mais... e Um Homem não chora para esconder essa morte.
Teria o destinatário lido aquele apelo para que o amasse só por mais um momento. Teria o corpo daquela carta encontrado o corpo das mãos que a seguraram. O cheiro do papel teria sido, uma última vez, o cheiro da ansiedade de quem a quis rasgar.
Ela retrocedia agora dias, anos, a um tempo em que não houve tempo, para encontrar um sonho que a faça erguer a cabeça. Levantar-se. Mas as camélias murcham e o tempo pinta-as de dourado na sua morte anunciada.
O papel estala, e cada vez que o desdobra ela ouve o sufoco de um grito, e os seus olhos começam a viajar nos carris de cada frase:

De onde te escrevo, Primavera de 19...
Querida Hel.

Nunca te quis menos do que agora. Sempre desejei os momentos em que voltava a encontrar-te e o meu corpo irradiava ao ver-te.
Não sei como continuar, mas hoje deixei voar a andorinha que cuidámos, é tempo dela voar, é tempo de ver que o tempo passou e nos mudou.
Fico com as asas negras que tentei cuidar na lembrança do que vivemos ontem. O paraíso existiu para mim mas perdi as forças e deixo voar os sonhos que tive. A culpa é minha porque fraquejei. Desculpa porque te quero e não te tenho. As tuas cartas mudaram e já não me consigo ler nelas, escreves para mim e o que leio não sou eu. Choro em tudo o que faço, porque um homem também chora.
A andorinha fica na minha lembrança no rosto de luz que não ri comigo.
Deixo-te porque te vi bem e não me disseste que me querias. Abandonámo-nos ainda antes de nos encontrar, e quando nos encontrámos foi tarde.
Eu Fico aqui.

Beijo

Ela dobrou de novo a carta, meteu-a no livro e deixou-a esquecida sem chorar, sem se queixar, sem sofrer.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Terre D'Hermes

Durante a noite ele chegou com toda a força que podia para seduzi-la. Voltar a abraça-la, despi-la de tudo o que a cobria, amá-la mais uma vez. Distante, ela agora estava ainda mais perto do toque frio que a desfazia e que lhe dava novas forma. Ao fundo um raio caía e iluminava por instantes este amor que se repetia cada vez que se encontravam. Em cima, as nuvens tapavam-nos numa cama de desejos aguardados. Na violência que geravam, um beijo a cada toque, o frio que deslizava no corpo dela, que não se mexia, para ser seduzido. Ele frio, doce, agressivo nos seus intentos, ela gélida, rígida na sua grandeza. Percorria cada curva, cada saliência deste corpo que via ao longe sem conseguir tocar. Hoje, ela voltava a ser sua, e ele lutava para beija-la no topo uma vez mais, talvez a última nessa noite.
De manhã, os pés calmos dele imprimem-se na areia perdida. Cheio de si, respira o ar que o acalma e entrega-se ao medo de não voltar a amar. Na manhã de Inverno a maresia parece responder à sua súplica de solidão. Mas ele, ainda longe de perceber que a maresia é o suor daquele amor que os violentou, ignora-os.
Na eternidade de um temporal o mar amou a falésia, sem saber se a voltaria a amar, e ao longe sorriem, um para o outro, da ingenuidade dos passos que se imprimem.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Beyond Paradise

As mãos passam por cada estante que encontra, procurando um corpo que cada dia se afasta mais. Num intervalo de si, sentia-o ainda numa doçura que a cativara, numa ternura que a embevecera. E agora a solidão apoderava-se de cada inspiração sôfrega. Lamentava não poder senti-lo de novo perdido em si. Uns olhos ternos que se escondem por trás da cor que fazem brilhar. Um desconhecido que despertara nela vida e medos escondidos. Resgatada por momentos e novamente presa nas suas grades de ansiedade. O herói que a defendera e a seduzira, parte agora para o mar, na construção de uma aventura em que ela não se inclui. E, largada no silêncio que a sua casa lhe dera, sente-se completa na paz que o som ofusca. A felicidade está no silêncio que a cerca e no sonho da carta que não chegará. Ainda assim, percorre a casa sedenta de paixão, acariciando o corpo distante do marinheiro que não a quis prender.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

UOMO



Sentado à janela, olhando o fundo da rua, ele espera que seja diferente. O chá fumegante é o repouso do olhar que sorri e uma música ao fundo ocupa-lhe ainda o pensamento. A camisola perfeita, a casa arrumada e alguma curiosidade no tempo que passa. Uma companhia que busca mas não é a certa. Um olhar de criança que quer ser descoberto, nutrido de um imaginário que já não existe, que se esconde atrás de uma árvore, que acarinha com o sorriso, e brinca consigo no que esconde de si a quem chegar. No luscofusco do dia, a campainha toca, falam, entregam-se, em partes, em momentos, dois corpos que não se conhecem que chocam e que se desejam. Que se querem encontrar a medo, que querem dar e receber prazer, partilhar-se. Um beijo desencontrado, quase prefeito, outro perfeito mas falhado, e depois... Dois corpos perfumados que se impregnaram do cheiro alheio e que persiste mais além, horas depois, numa cama solitária. Tudo porque o futuro ficou na campainha que tocou.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Egoiste



Para a Paulinne

Lá fora a colina, o rio e os telhados. Cá dentro ela deixa-se ir sem destino nos carris que a prendem sentada num eléctrico vazio. Na próxima paragem um rapaz entra e senta-se à sua frente. O ar pesa por entre aqueles olhares que se cruzam. Um sorriso que se espelha nas sobrancelhas. O rapaz perdeu o emprego, não come desde manhã e esquece-se de si, ali. Ela quer que ele olhe de novo, doce, como se a pudesse amar. Ela olha-o e ele vê-a reflectida no vidro. Cada sarda brilha com os movimentos do eléctrico. Ela tira o chapéu, corada, no calor do eléctrico que se encheu. Ele pisca o olho e lá fora alguém responde - doce princesa de azul – e as sardas agora são uma lágrima que cresceu dentro, ainda antes da paragem em que ele entrou. Porque ela não o esperava e nem ele sabia que ela existia. E agora que ele a conhece, ela sabe que ainda está sozinha presa nos sentados carris do eléctrico que regressa.