quarta-feira, 27 de maio de 2009

Lettre a Anna

Quando entrou naquele quarto não esperava encontrar a carta que anos antes, escondida no livro, agora retira da prateleira. Ela amarelecida repousava na página que gritava:
“- Não percebo nada... Não percebo nada... Tanto tu como eu somos apenas duas pessoas... duas pessoas e nada mais... duas pessoas como todas as outras, que apenas querem viver simplesmente, como toda a gente, como duas pessoas, sem pretensões a grandes ideias ou grandes princípios... e, no entanto olha o que aconteceu...”
A curiosidade humana leva a abrir feridas fechadas, algumas até mesmo curadas, numa tão simples folha de papel. A tinta negra, na folha de papel branca, coseu numa linha de saudade o amor que não seria mais... e Um Homem não chora para esconder essa morte.
Teria o destinatário lido aquele apelo para que o amasse só por mais um momento. Teria o corpo daquela carta encontrado o corpo das mãos que a seguraram. O cheiro do papel teria sido, uma última vez, o cheiro da ansiedade de quem a quis rasgar.
Ela retrocedia agora dias, anos, a um tempo em que não houve tempo, para encontrar um sonho que a faça erguer a cabeça. Levantar-se. Mas as camélias murcham e o tempo pinta-as de dourado na sua morte anunciada.
O papel estala, e cada vez que o desdobra ela ouve o sufoco de um grito, e os seus olhos começam a viajar nos carris de cada frase:

De onde te escrevo, Primavera de 19...
Querida Hel.

Nunca te quis menos do que agora. Sempre desejei os momentos em que voltava a encontrar-te e o meu corpo irradiava ao ver-te.
Não sei como continuar, mas hoje deixei voar a andorinha que cuidámos, é tempo dela voar, é tempo de ver que o tempo passou e nos mudou.
Fico com as asas negras que tentei cuidar na lembrança do que vivemos ontem. O paraíso existiu para mim mas perdi as forças e deixo voar os sonhos que tive. A culpa é minha porque fraquejei. Desculpa porque te quero e não te tenho. As tuas cartas mudaram e já não me consigo ler nelas, escreves para mim e o que leio não sou eu. Choro em tudo o que faço, porque um homem também chora.
A andorinha fica na minha lembrança no rosto de luz que não ri comigo.
Deixo-te porque te vi bem e não me disseste que me querias. Abandonámo-nos ainda antes de nos encontrar, e quando nos encontrámos foi tarde.
Eu Fico aqui.

Beijo

Ela dobrou de novo a carta, meteu-a no livro e deixou-a esquecida sem chorar, sem se queixar, sem sofrer.